quinta-feira, outubro 16, 2008

Breve Ensaio em silêncio

O local em que me encontro é um quarto-e-sala simpático, que provavelmente possui vantagens com relação à amplitude de outros JKs que conheço - embora, é claro, eu não seja perita em imóveis do tipo, talvez tenha visitado uns dois ou três até hoje. Neste espaço, percebo as paredes pintadas de rosa-claro-quase-pêssego, e a sensação é agradável. Alguém um dia chamou a atenção para isso: a cor tinha sido mal escolhida, o lugar parecia uma casa de boneca tamanho gigante. Mas a língua em questão estava equivocada, e é aconchegante este rosa-claro-quase-pêssego que me circunda. Meus olhos continuam a atravessar o local e atentam a um outro detalhe: a única parede que possui tijolos a vista, indicando que chegamos à cozinha (como estou em um JK, não há qualquer delimitação física, a não ser a porta do banheiro). É de bom gosto e embora a cama do apartamento não esteja longe do microondas, os tijolos a vista transmitem a idéia contrária.


Provavelmente eu poderia detalhar outros objetos que estão à minha volta - não levaria tempo, acho, mas levaria a paciência que ainda resta de todos vocês ao limite (a menos que a maioria dos que aqui se encontram sejam decoradores ou arquitetos, e mesmo assim eu teria cá minhas dúvidas). E o motivo para tanta observação barata é o ensurecedor silêncio que divido com este recinto. Sim, porque às vezes a ausência de barulho externo, pode agitar as derivas de um mar interno. É impressionante este casulo contemporâneo: não há som de passos na escada, não há qualquer vizinho chegando ou saindo do prédio, tampouco suspiros ou gritos intraduzíveis: estou tão só e tão acompanhada da minha própria criatura.


Levanto, lavo a louça, quebro um copo, juntos os cacos, resolvo passar café, descubro que o pó acabou e encaro a versão solúvel: o microondas chia 4 vezes, a água está quente, misturo o Nescafé, pingo algumas gotas de adoçante e volto ao sofá: uma maratona de pequenos ruídos e nenhuma vida.


Então eu não tenho outra saída, a não ser ligar a televisão(aposentei a internet momentaneamente - embora a escolha seja oriunda de força maior, ou seja, o provedor se encontra em manutenção); e a minha é composta por canais abertos, o que torna a situação um tanto mais desanimadora, eu constato.
Pois exatamente de peito aberto que a minha saga televisiva foi iniciada: e o que mais me impressionou não foram as notícias que os apresentadores de um telejornal informaram - uma vez que o cotidiano jornalístico nos faz recordar que a violência continua, o preço dos alimentos não param de subir e os políticos estão ainda mais demagogos nesta época de eleição. Quer dizer, carecem de originalidade nossos astutos jornais, ou é o homem que continua repetitivo no seu comportamento esquizo-irracional-seila-mais-o-que-é possível-a-esta-altura? Sinceramente, eu gostaria muito de acreditar na primeira opção.


Pois bem, volto ao que então me impressionou - e pelo comentário acima, é de se supor que realmente fiquei boquiaberta com o fato (óbvio?). Depois de fuçar nos meus 5 canais disponíves e descobrir que 3 deles transmitiam em tempo real "a solução imediata do seu problema (em até 5 dias??) através do nosso Senhor Jesus Cristo em comunhão com a Igreja X (ou Y, ou Z)" eu imaginei quantas pessoas estariam acordadas naquele momento e escutando o mesmo silêncio ensurecedor que eu, ali, disfarçava. Foi então que uma senhora ligou para o pastor que comandava um dos programas religiosamente notívago; eu me acomodei no sofá e participei das lamúrias que a mulher confessava ao pastor (e à todas testemunhas invisíveis): o marido alcóolatra, o filho rebelde, a depressão ... um drama capaz de fazer inveja às novelas do SBT. Naquele momento, eu sentia participar de uma espécie de menagé-a-troi entre desconhecidos distantes: ela desabafava, ele a convencia a ir no dia seguinte ao templo tal e eu escutava tudo, sem qualquer chance de participação; a voyer daquele ato.

Busco o controle remoto que se esconde atrás das minhas costas: desligo o aparelho e me despeço de um mundo no qual eu não mais pertenço - se é que um dia fiz, de fato, parte dele.


É curioso que a tecnologia desenvolva suas proezas de maneira veloz, talvez mais do que supomos. E mesmo com toda essa rapidez, é visivel que os seres humanos utilizem tais ferramentas viáveis de comunicação, inclusive como veículos para lidar com um antigo sentimento: a solidão. Será medo de ir de encontro aos próprios demônios adormecidos? Ou é apenas uma fuga do tédio, da ansiedade, das conveniências socias?
É possível hojel fazer sexo de forma segura sem utilizar qualquer método: há inúmeros chats para isso. Não há cheiro, não há defeito, não há conversa sedutora antes ou depois - basta encontrar uma pessoa disposta a realizar a mesma tara que você. O papo está ruim? Vá para outra sala ou desligue o programa. Não há necessidade de desculpas. Ou ainda se você for mais convencional, existe o 0900, mas aí o minuto é caro...


*****




Num primeiro instante, parecerá incoerente a afirmação de que sou adepta das facilidades modernas, ou seja, a possibilidade de integração comunicacional com o mundo através de redes invisíveis, que se conectam ao meu notebook, ao telefone celular ou mesmo ao rádio e à televisão. Acho de fato sensacional estas descobertas terem acontecido num espaço risível de tempo e agora usufrirmos dos bônus que elas nos concedem: a proximidade com pessoas que moram em lugares distantes, conhecidas ou não, as informações acerca de qualquer assunto, desde político até artístico. A gama de (des) vantagens são imensas e variadas. E no que diz respeito às ferramentas de comunicação imediata, acredito que uma das causas para existência de tal, seja a necessidade do homem de manter seus vínculos afetivos/intelectuais atuantes, através de uma máquina fria. Isso é bom, não é ruim.


A ironia existe quando vivenciamos uma ciranda solitária entre o mundo real e virtual. Evitamos o silêncio ensurecedor interno que colide em nosso cotidiano animalesco; fugimos então para o mundo fantástico dos mocinhos das novelas, para o The End dos filmes, para os bate-papos com seres pseudo - perfeitos na Internet. Ainda que estejamos envolvidos ao mesmo tempo com milhares de pessoas, continuamos na mesma posição de fuga inicialmente criada.

Entretanto, deparar-se com a solidão não deve ser uma experiência desastrosa - pelo contrário, é necessária. Saudável para escutar a si; obrigatória para rever conceitos e desmistificar os medos existentes; necessária para celebrar as próprias vitórias. Daí descobrimos o lado B do mocinho; pensamos no que existe além do The End; não descartamos de forma alienada àqueles que a Internet nos apresenta - simplesmente porque elas são pessoas reais, com qualidades e defeitos reais.



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A janela do quarto e sala anuncia que a manhã chegou. O barulho da construção de um posto de gasolina inicia-se e logo depois escuto a síndica reclamar de algo pelos corredores.


Felizmente, neste pequeno ambiente, tudo continua em silêncio.

4 comentários:

Ana Pérola Veloso disse...

o silêncio é bonito.

Unknown disse...

Caramba! Como você escreve bem!!! Só podia ser a minha irmã! hheheeheh...o texto esta muito bacana mesmo! Parabens!

Drico Andante disse...

A exótica descrição do espaço imobiliário e a sarcástica colocação de que tal descrição poderia causar um desanimo ao leitor, a demonstração das opções mídicas como último recurso da total falta de opção noturna e a observação da possibilidade criativa na vivência de si mesmo através da experiência da solidão, me deixaram não menos boquiaberto do que na breve descrição de tua vida no teu profile.
Eu é que fico lisonjeado pela possibilidade de conhecer alguém tão criativa com uma mente tão maravilhosa.
Adorei esse texto e comentarei todos os q eu conseguir ler, rsrs.
(Não sei quando termino, já q vc não para de escrever, rs)
E me dispeço de ti, na eloquência de meu amor platônico, com uma venda nos olhos e uma espada na mão!
Justiça seja feita!
Vc é magnifica!
Um Bjo!

Débora Vasconcelos disse...

é incrivel como um ambiente solitário e silêncioso pode abrir um leque de devaneios em nossa mente e ao fim faça surgir tão maravilhoso texto que nos faz por fim entrar dentro dele e realmente ver tudo pelo qual se narra...

parabéns Ane sempre me fazendo entrar em outra dimensão..

mill bjkkas da Débora Vasconcelos